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Diário de ensaios e desenvolvimento do “Processo de Estudo para Fados e Afins”

➤ Dia 26/08/2016 (sexta-feira)

Depois de intensa preparação com ensaios na segunda, quarta e quinta-feira, hoje, sexta-feira, ensolarada, na cidade de São Paulo, teremos o nosso primeiro encontro com turma de criação do projeto.

Roteiro para hoje:

FADOS

1. Lisboa

Verbal

Digo

“Lisboa”

Quando atravesso – vinda do sul – o rio

E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse

Abre-se e ergue-se em sua extensão noturna

Em seu longo luzir de azul e rio

Em seu corpo amontoado de colinas –

Vejo-a melhor porque a digo

Tudo se mostra melhor porque digo

Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência

Porque digo

Lisboa com seu nome de ser e de não ser

Com seus meandros de espanto, insônia e lata

Seu secreto rebrilhar de coisa de teatro

Seu conivente sorrir de intriga e máscara

Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata

Lisboa oscilando como uma grande barca

Lisboa cruelmente construída ao longo de sua própria ausência

Digo o nome da cidade

Digo para ver

de Sophia de Mello Breyner Andresen

Movimento - a partir Canção do Mar

Fui bailar no meu batel, alem do mar cruel

E o mar bramindo, diz que eu fui roubar a luz sem par do teu olhar tão lindo

Vem saber se o mar terá razão

Vem cá ver bailar meu coração

Se eu bailar no meu batel, não vou ao mar cruel

E nem lhe digo aonde eu fui cantar, sorrir, bailar, viver, sonhar contigo

2. Ausência

Nenhuma coisa procura

na palavra o seu nome

mas a nossa voz por vezes

é a voz do seu silêncio

(António Ramos Rosa In ‘A Intacta Ferida’ ed. Relógio d’água, Lisboa, 1991.)

Movimento - a partir Ó Sino da Minha Aldeia

Ó sino da minha aldeia

Dolente na tarde calma

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma

E é tão lento o teu soar

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida

Por mais que me tanjas perto

Quando passo sempre errante

És para mim como um sonho

Soas-me na alma distante

A cada pancada tua

Vibrante no céu aberto

Sinto mais longe o passado

Sinto a saudade mais perto

3. Viagem

Verbal

Foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz.

O céu — impossivelmente me recordo — era dum resto roxo de ouro triste, e a linha agónica dos montes, lúcida, tinha uma auréola cujos tons de morte lhe penetravam, amaciadores, na astúcia do seu contorno. Da outra amurada do barco (estava mais frio e era mais noite sob esse lado do toldo) o oceano tremia-se até onde o horizonte leste se entristecia, e onde, pondo penumbras de noite na linha líquida e obscura do mar extremo, um hálito de treva pairava como uma névoa em dia de calor.

O mar, recordo-me, tinha tonalidades de sombra, de mistura com figuras ondeadas de vaga luz — e era tudo misterioso como uma ideia triste numa hora de alegria, profética não sei de quê.

Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de portos inexistentes — portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais. Julgais, sem dúvida, ao ler-me, que as minhas palavras são absurdas. E que nunca viajastes como eu.

Eu parti? Eu não vos juraria que parti. Encontrei-me em outras partes, noutros portos, passei por cidades que não eram aquela, ainda que nem aquela nem essas fossem cidades algumas. Jurar-vos que fui eu que parti e não a paisagem, que fui eu que visitei outras terras e não elas que me visitaram não vo-lo posso fazer. Eu que, não sabendo o que é a vida, nem sei se sou eu que vivo se é ela que me vive (tenha esse verbo «viver» o sentido que quiser ter), decerto não vos irei jurar qualquer coisa.

Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vimos viver-nos. Perguntais-me a vós, de certo, que sentido têm estas frases; nunca erreis assim. Despedi-vos do erro infantil de perguntar o sentido às coisas e às palavras. Nada tem um sentido.

Em que barco fiz essa viagem? No vapor. Qualquer. Rides. Eu também, e de vós talvez. Quem vos diz, e a mim, que não escrevo símbolos para os deuses compreenderem?

Não importa. Parti pelo crepúsculo. Tenho ainda no ouvido o ruído férreo de puxar a âncora a vapor. No soslaio da minha memória movem-se ainda lentamente, para enfim entrarem na sua posição de inércia, os braços do guindaste de bordo que havia horas haviam magoado a minha vista de contínuos caixotes e barris. Estes rompiam súbitos, presos de roda por uma corrente, de por cima da amurada onde esbarravam, arranhando, e depois, oscilando, se iam deixando empurrar, empurrar, até ficarem por cima do porão, para onde, súbitos, desciam (...), até, com um choque surdo e madeirento, chegarem esmagadoramente a um lugar oculto no porão. Depois soavam lá em baixo o desatarem-os: em seguida subia só a corrente chincalhante no ar, e recomeçava tudo, como que inutilmente.

Eu para que vos conto isto? Porque é absurdo estar-vos a contá-lo, visto que é das minhas viagens que disse que falaria.

Visitei Novas Europas e Constantinopolas outras acolheram a minha vinda veleira em Bósforos falsos. Vinda veleira espantais? É como vos digo, assim mesmo. O vapor em que parti chegou barco de vela ao porto [...] Que isto é impossível dizeis. Por isso me aconteceu.

Chegaram-nos, em outros vapores, notícias de guerras sonhadas em Índias impossíveis. E, ao ouvir falar dessas terras tínhamos importunamente saudades da nossa, deixada tão atrás quem sabe se naquele mundo.

Fernando Pessoa, in ‘O Livro do desassossego’’.VIAGEM NUNCA FEITA (a)

Movimento - a partir Há uma musica do povo

Há uma musica do povo

Nem sei dizer se é um fado

Que ouvindo-a há um ritmo novo no ser que tenho guardado

Ouvindo-a sou quem seria

Se desejar fosse ser

É uma simples melodia

Das que se aprende a viver

Mas é tão consoladora

A vaga e triste canção

Que a minha alma já não chora

Nem eu tenho coração

Sou uma emoção estrangeira

Um erro de sonho ido

Canto de qualquer maneira

E acabo com um sentido

4. Cais

Movimento - a partir Cais

Para quem quer se soltar invento o cais

Invento mais que a solidão me dá

Invento lua nova a clarear

Invento o amor e sei a dor de me lançar

Eu queria ser feliz

Invento o mar

Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir eu quero mais

Tenho o caminho do que sempre quis

E um saveiro pronto pra partir

Invento o cais

E sei a vez de me lançar

5. Recifes

Movimento - a partir Nau Bretoa

Nas águas verdes do mar

Tinha um paquete bonito

Quando o farol deu sinal

Eu avistei Porto Rico

Verbal

Aqui o mar é uma montanha

Regular redonda e azul

Mas alta que os arrecifes

E os mangues rasos ao sul

Do mar extrair podeis

Do mar deste litoral

Um fio de luz precisa,

Matemática ou metal

Na cidade propriamente

Velhos sobrados esguios

Apertam ombros calcários

De cada lado de um rio

Com os sobrados podeis

Aprender lição madura:

um certo equilíbrio leve

na escrita, da arquitetura

E neste rio indigente,

Sangue lama que circula

Entre cimento e esclerose

Com sua marcha quase nula,

E na gente que se estagna

Nas mucosas deste rio,

Morrendo de apodrecer

Vidas inteiras à fio,

Podeis aprender que o homem

é sempre a melhor medida.

Mais: que a medida do homem

não é a morte mas a vida.

De João Cabral de Melo Neto Pregão Turístico do Recife


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